Acordei bem disposto
naquele dia e desejei viver uma história diferente. Estava cansado de olhar
pelo mesmo ponto de vista. Tudo que eu tinha que fazer era idêntico ao que eu
havia feito no dia anterior. Nada mudaria, a não ser que eu sofresse algum
atropelamento ou fosse assaltado.
Abri meus olhos, me
espreguicei, levantei da cama e fui para o banheiro. Liguei o chuveiro, deixei
a água cair sobre meu rosto e pensei nos cinco pãezinhos que eu iria comer no
café da manhã. A manteiga havia acabado e eu só tinha cinco pesos pra comprar
os pães. Teria que pedir um crédito para o senhorzinho da venda.
Após o banho fui escovar
os dentes e percebi que o creme dental havia acabado. Decidi me vestir e depois
resolver esse problema. Coloquei minha velha bermuda jeans, minha camisa
vermelha e meu chinelo preto. Peguei uma faca e cortei o tubo do creme dental
ao meio para utilizar o restinho que ainda tinha, assim pude deixar meus dentes
mais brancos e resistentes, como diz o comercial da TV.
Peguei as moedas e fui até
a venda. No caminho conversei com os meninos que vendiam alguns saquinhos com
cinco pedacinhos de cana-de-açúcar, ao preço de dois pesos cada. Eles esperavam
os carros pararem no cruzamento da movimentada rua e ofereciam seus produtos
naturais aos motoristas e aos passageiros dos ônibus. Cada guerreirinho
daqueles devia ter 11 anos no máximo.
Depois passei para falar
um bom dia para a senhora camponesa que vendia maçã, banana, laranja e outras
frutas em um carrinho de mão. Ela sorriu e disse: “Buen dia, joven. Cómo le
vá?”. Eu respondi que estava tudo bem e que iria comprar uns pães para o café
da manhã.
Entrei na venda e o Don
Hugo estava assistindo TV. Quando me viu, se levantou do banquinho para me
atender. Também disse que sua esposa havia trazido alguns pãezinhos da escola
em que ela trabalhava e que havia guardado para mim. Na hora fiquei muito
feliz, pois sobraria dinheiro pra comprar a manteiga.
Voltei para o meu quarto
com o saudável café da manhã, liguei o radinho e coloquei a água para ferver.
Enquanto a água fervia, passei manteiga nos pães e coloquei algumas folhas de
coca na xícara de asa quebrada que eu sempre usava.
A água ferveu, o pão estava
perfeito e o chazinho me lembrava do chá de hortelã que eu tomava quando era
criança. Alguns dizem que a folha de coca é prejudicial, mas eu penso que o
processo de maldade que é feito com ela, até uma azeitona com mil produtos
químicos faria dano.
Lembrei que precisava
lavar minhas roupas. Porém, no local havia um único tanque e o varal sempre
estava cheio de roupa dos outros moradores. Então decidi colocar tudo na
mochila de viagem que meu pai havia me presenteado e seguir até a casa da Yara.
Enquanto colocava as roupas, lembrei da minha mãe, pois se ela visse o estado
das golas das minhas camisas, ela certamente brigaria comigo.
Fui até o ponto esperar o
micro e de repente apareceu um camarada que era pastor de uma igreja. Ele disse
que estava com saudades, que eu desapareci, que todo mundo estava sentindo
minha falta e etc. Normalmente pessoas de grupos religiosos falam isso quando
te veem na rua, sempre expressam uma dor extraordinária de saudade.
Eu lhe disse que não fui
porque estava indo em outra igreja, que era mais próxima da minha casa. Também
expliquei que estava buscando um emprego e que a faculdade estava me
consumindo, pois os professores estavam passando muita tarefa.
Ele mudou um pouco o
assunto e disse que ficou sabendo que eu estava passando umas dificuldades
financeiras, que mal podia comprar o feijão. Respondi que sim, mas que o arroz
e a sardinha nunca faltaram – brinquei para ele entender que existe desgraça
maior no mundo.
Com olhar de
sabedoria e voz de experiência, ele me perguntou se eu estava dando o dízimo.
Falei que não, que se eu desse 10% do pouco que eu tinha, não conseguiria pagar
nem o aluguel. O papo acabou ali, ele disse para eu refletir num tal de
“princípio da semeadura” e foi embora cuidar de seu rebanho. Fiz uma cara de
indignação e em seguida o ônibus chegou.
Após meia hora dentro
daquela lata de sardinha, cheguei ao meu destino. Apertei a campainha, abracei
a Yara e coloquei minhas roupas dentro da máquina. Usei o restinho de sabão em
pó que eu tinha comprado semanas antes e as deixei limpinhas. Elas não ficaram
tão limpas quanto as do comercial da TV, mas pelo menos estavam cheirosas.
Em meio ao vento forte,
estendi a roupa e entrei para almoçar. A Yara tinha preparado arroz, feijão,
bife, salada e na geladeira tinha refrigerante. Era um banquete, e ela
cozinhava perfeitamente. Foi um almoço daqueles que a gente não esquece.
Repleto de tempero, acompanhado de uma conversa de qualidade.
A comida do prato acabou e
o refrigerante do copo também. Como de costume, lavei toda a louça e a Yara
secou. Varremos a cozinha e passamos um pano pra deixar o local brilhando,
iguais àqueles incríveis pisos que são mostrados no comercial da TV.
Em seguida, fui até o
varal e recolhi as roupas que já estavam secas. Dobrei direitinho e coloquei na
mochila. Faltou uma bermuda e três camisas que ainda estavam úmidas. Deixei que
elas secassem totalmente e quando eu pudesse voltaria para buscá-las.
Agradeci minha amiga por
ter me ajudado, dei aquele abraço de despedida e fui até a avenida pegar o
ônibus de volta para o centro da cidade. No caminho, bateu aquela saudade de
casa. De poder jogar vídeo game com meu irmão e brincar com o Bili. É
complicado, estar sozinho dentro do busão faz a mente pensar mais do que o
normal.
Desci do precário
transporte público em que me encontrava, passei na venda novamente, pedi ao Don
Hugo que me vendesse uma pasta de dente fiado e fui pra casa. Cansado, deitei
na cama, que parecia ser aquele colchão macio que aparece no comercial da TV, e
fixei meus olhos no teto.
De repente minha mente se
acalmou e comecei a agradecer a Deus pelo dia diferente que eu vivi. Fui muito
grato por Ele ter colocado pessoas e situações especiais no meu caminho, mesmo
eu sendo um amaldiçoado aos olhos do pastor da tal “lei da semeadura”.
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