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sexta-feira, setembro 25, 2015

Dívida de vida

Sem dinheiro para passar a noite vagando pela rua Augusta, o jeito foi aceitar o convite para um churrasco na casa do cunhado. Não era exatamente o que Muta desejava, mas ficar em casa naquela noite o levaria a uma depressão, pois a falta de emprego e a recente ruptura de um relacionamento de quatro anos ainda o atormentava.

Difícil também estava sua saúde. A famosa caxumba o visitou e agora faz morada em seu rosto. Tomou remédio a semana toda e nada de melhorar. Também foi até uma benzedeira que fazia uma simpatia que era tiro e queda, mas foi bote errado. Nem a medicina e nem os rituais curaram o rapaz.

A casa de sua irmã e de seu cunhado era longe. Contou umas moedas e resolveu ir de moto-táxi. Chegou tranquilo, mas triste por não ter um mísero real no bolso. Cumprimentou todos os presentes, sentou em uma cadeira e abriu a primeira cerveja. Enquanto bebia, acendeu um cigarro. Entre um trago no careta e um gole na breja, observava o papo dos demais. Sem muito interesse no assunto, aguardava uma brecha para entrar na conversa e mudar o rumo das ideias.

O bate-papo não o atraía. Não logrou êxito em mudar o tema que reinava na roda. Ninguém merecia passar a noite toda escutando sobre novela, atores e atrizes. Revoltou. Tirou o celular do bolso, abriu a quinta latinha e se desconectou do ambiente. Talvez, entre uma mensagem e outra, conseguisse um trocado emprestado ou uma carona até o centro de São Paulo.

Embora colecionasse muitos contatos em sua agenda, somente um poderia ajudá-lo no momento: o De Gardena. Muta, porém, já devia 20 reais para De Gardena e teria que ser muito bom de lábia para negociar o empréstimo e a carona.

- Eaí, parça. Suave? Fazendo o que aí?

- Suave. Tô moscando em casa. Vendo TV.

- Tá afim de ir pra Augusta?

- Será? Já é tarde, man. Você tem quanto aÍ?

- Não tenho nada. Se você me emprestar eu pago depois.

- Tá tirando, hein. Já me deve. Arruma aí com alguém que eu coloco a gasolina.

- Vou tentar aqui.

Chapado, percebeu que as horas se passaram muito depressa e já era de madrugada. Ninguém queria emprestar dinheiro para o pobre desempregado, que perdia cada vez mais a esperança a cada resposta negativa.

O remédio não fazia mais efeito. A preocupação com o desemprego não passava mais pela cabeça de Muta e o término do relacionamento nem o abalava mais, pois conversava com seis garotas pelo celular atrás de uma companhia.

Como nada saiu como ele esperava, desistiu. Bem louco de álcool, doente, sem condições de voltar para casa, o jeito foi implorar um cantinho pra dormir ali mesmo. A noite só seria um desastre completo se a bateria do celular acabasse, já que o carregador estava bem longe dali. O jeito foi cancelar a missão:

- Eai, De Gardena. Deixa quieto essa fita. Tô bem loco e ninguém me emprestou nada.

- Firmeza, mano. Tô aqui vendo um filme do Che. Mó sono já.

- Podi crê. Coloquei um colchonete aqui na cozinha. Vou dormir aqui mesmo. Tô só o pó. Osso é aguentar o barulho dessa geladeira velha.

- Que situação, hein, mano. Boa sorte aí. Não esquece dos 20 reais que me deve. Abraço.


domingo, agosto 23, 2015

Espasmo

Maluco, que susto da porra. Foram vários pipocos que nem entendi nada, só me assustei e caí. Que fita! Fui surpreendido de repente que nem deu tempo de pensar, só sei que tô aqui, caído na calçada.

Porra! Quem fez isso comigo? Minha mãe vai chorar quando me ver neste estado. Ela fez um bolo de chocolate pra comemorar meu novo emprego. Cadê o refrigerante que comprei? Filhos da puta! Só fui comprar um refri ali no bar pra comer com o bolinho e me pegaram na trairagem. Nem deu tempo de ver quem era.

Por que será que fizeram isso comigo? Nem consigo falar, até pra pensar tá foda. Tem muito sangue saindo de mim. Meu deus! Que maldade fizeram comigo. Alguém liga pro Samu. Na verdade nem sei se tem alguém me vendo aqui jogado igual a um animal abatido. Caraca, mano. Prevejo meu fim. Logo agora que reformei meu quartinho e consegui um trampo registrado. Estava osso viver de bico.

Ainda bem que a Manu não veio comigo. Graças a deus! Cadê vocês, seus assassinos de merda? Covardes! Não fiz nada. País injusto da porra. Morre mais gente aqui do que lá pra aqueles lados do Iraque. Certeza que morre. A pena de morte reina nesse Brazilzão sem lei. Mas só tem um lado da sociedade condenado, o outro lado tem quem passa um pano.

E agora, truta? Minha mãezinha vai passar mal e ela já tem problema de pressão. Ainda bem que meu pai não tá vivo pra me ver assim. Caralho! Que dor da porra. E não para de sair sangue. Tô com o barulho dos tiros e do pneu do carro dentro da mente.

Amanhã vou ser notícia. Vão ganhar dinheiro com a minha desgraça. Aí, seus arrombado! Eu tenho nome, hein. Nome e sobrenome. Sou trabalhador e tô aqui morrendo de graça, igual fizeram com o Miltinho da Ladeira. Mataram o menino e o jornal disse que ele era do crime. Do crime porra nenhuma, ele era suave.

Tenho que provar que sou trabalhador? Por que só a gente daqui que tem que provar? Dessa vez nem tive que provar, quem vai ter a tristeza de responder as perguntas dos carniceiros vai ser minha mãezinha. Foda!

Alguém fala pra Manu que eu sempre fui firmeza com ela. Infelizmente o casamento não vai virar. As balas roubaram nosso sonho. Justo agora que arrumei aquele trampinho registrado. O Moacir falou que ia dar uma viagem de presente de lua de mel. Mas agora fodeu tudo. Nem deu tempo de casar, nem deu tempo de chegar aos 27. Nem deu tempo...

Nossa, mano. Foi tudo muito rápido e já nem enxergo mais nada. Mãe, vem logo e me ajuda. Desculpa, mas eu não consegui chegar a tempo pra comer o bolinho da senhora. Mas obrigado pelo carinho de sempre. Se existir um deus mesmo, ele vai saber o que falar na hora do tribunal. Meu sangue ainda tá quente.

Cadê o refri?